Liberdade era um sonho para Fernando. Não era só se libertar das grades da prisão em que estava, mas queria se ver livre da condição que lhe foi imposta ainda quando criança. O desejo era a emancipação do crime, das drogas e da fome. Desejava, principalmente, a liberdade da desigualdade.
A saída que encontrou foi a busca da dignidade pelo trabalho. Assim, criou a Cooperativa de Reciclagem Sonho de Liberdade, uma ação de empreendedorismo social em que podia não só refazer a própria história, mas a de outras pessoas que sofrem.
Com manchas de sol no rosto, Fernando de Figueiredo, 51 anos, diz que, apesar de ser o pior momento de sua vida, a prisão foi o local em que pensou em uma alternativa para mudar.
“A prisão foi pra mim uma escola da vida. No pior momento da minha vida, a minha mente abriu e eu consegui, lá dentro, pensar em uma alternativa de trabalho”. Atualmente, ele procura, através de sua cooperativa, a ressocialização e sustento de ex-detentos e mães em vulnerabilidade.
Hoje, ele afirma que o mais importante não é o dinheiro em si, mas sim ajudar outras famílias da Estrutural no DF, onde funcionava o maior lixão a céu aberto da América Latina, a 15 Km do Palácio do Planalto. “Eu amo o que eu faço. Trabalhar com vidas. Principalmente aqueles que ninguém quer”.
Segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio (PDAD) de 2021, o índice de Gini da renda domiciliar na região foi de 0,39, enquanto para a renda por pessoa foi de 0,43. Por esse motivo, as cooperativas de reciclagem se tornaram uma opção de trabalho na Estrutural.
“Se Deus existisse, se Deus me desse uma oportunidade para quando eu saísse daquele lugar, se eu pudesse mudar a minha vida para trabalhar com dignidade, com honestidade, ganhar o pão de cada dia”.
Foi esse desejo de mudar de vida que fez Fernando ter a ideia. No início, apenas eram reaproveitadas sobras de materiais de construção. Para dar sequência a seu projeto, ele chamou pessoas que, assim como ele, saíram da prisão. Esse era um grupo pequeno que foi se expandindo até que, atualmente, já passaram cerca de 1.500 pessoas por lá.
“Quando nós começamos, muitas pessoas falaram assim: ‘esse grupo aí não vai dar certo’. São pessoas que já passaram pelo sistema penitenciário. Mas eu falei: ‘nós vamos fazer esse grupo virar cidadão do bem para ajudar outras pessoas’. E hoje eu, Fernando, trabalho com a reciclagem não pelo dinheiro, mas porque eu sei que tem muita gente precisando”.
O maior objetivo do fundador da Cooperativa Sonho de Liberdade é incluir cidadãos marginalizados. Como ele mesmo cita, a comunidade LGBTQIA+, ex-presidiários, alcoólatras ou moradores de rua, não recebem as mesmas oportunidades de uma pessoa privilegiada.
Ele acredita e deseja que, um dia, seus colaboradores vão ser reconhecidos como merecem, pelo seu trabalho honesto e digno, mesmo que ainda não sejam valorizados na sociedade.
Dorian Ferreira, 37, é um dos trabalhadores que acreditou no projeto. Ele, que antes estava desempregado por conta de problemas de saúde, conta que achou na reciclagem uma oportunidade que nunca havia recebido antes.
O trabalhador hoje vive somente do dinheiro que ganha na Sonho de Liberdade. É com essa renda que ele sustenta os dois filhos e a esposa.
Segundo a administradora de empresas Roberta Feitosa, que é pesquisadora no tema do empreendedorismo social pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a concepção desse tipo de atividade em países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, possui ênfase nas atividades de mercado que promovam redução da pobreza.
Ela diz que pessoas como ele se arriscam diante de muitas incertezas quando criam produtos, serviços e soluções, mesmo dependendo de esforços para atrair e mobilizar recursos.
Sustento
Além disso, a cooperativa tem como propósito proporcionar oportunidades de emprego, geração de renda, ressocialização e contribuir com o meio ambiente. Fernando deseja, mais que um ambiente de trabalho, formar uma família.
Na cooperativa, ao todo, 80 famílias sustentam-se com o dinheiro que recebem a cada 10 dias de produção. O ganho é dividido igualmente entre eles, mas esse valor depende muito da quantidade de material que foi vendido durante a semana.
De acordo com o idealizador do projeto, os trabalhadores passam por dificuldades para se manter, já que recebem menos de R$ 1.000 por mês.
Além disso, materiais como vidro, metal, cobre e alumínio duro podem ser vendidos individualmente para fazer uma renda extra.
Segundo os estudos de Roberta Feitosa, o empreendedorismo social está mais presente nas regiões mais vulneráveis e que compreendem necessidades, desempenhando assim um papel fundamental na economia.
Isso faz com que o ato cresça ao redor do mundo. Segundo ela, relatórios da União Europeia apontam que a cada quatro novas empresas criadas, ao menos uma é social.
Fernando ainda se mostra preocupado com o rendimento por conta do “empobrecimento do lixo”, já que, de acordo com ele, o lixo perde o seu valor depois do aumento do desemprego e as pessoas acabam optando por reciclar em casa para economizar.
“O lixo hoje está pobre por conta do desemprego estar muito grande. As dificuldades estão muito grandes. Então hoje, a pessoa está fazendo conta de centavo. Hoje, por exemplo, a pessoa toma uma latinha de cerveja e já fala: ‘uma latinha, já vou vender por centavos, 50 latinhas já vou vender por 8 reais, 10 reais’. Então dá pra fazer alguma coisa”, completa Fernando.
Sustentabilidade
Segundo o biólogo Stefano Aires, o papel das cooperativas é muito importante para a economia local, já que cria pequenos empreendedores e forma uma cadeia de trabalho, como o catador, a pessoa que seleciona, quem faz o transporte e quem dá um destino apropriado para o resíduo.
Dessa forma, muitas famílias tiram o sustento na Sonho de Liberdade. Como é o caso de Poliana Teixeira, 35 anos, mãe de dois filhos. O trabalho de catadora é o que lhe sustenta todos os dias.
Sentada no chão, almoçando em meio ao forte cheiro de lixo, Poliana reconhece a importância do trabalho dos catadores. “Eu não tenho vergonha de falar assim: ‘eu sou catadora’. Porque é daqui que eu tiro o sustento pra levar pra casa, é daqui que eu tô ajudando o meio ambiente. Eu sou muito grata por causa disso”, conta ela.
Libertação e transformação
O nome da cooperativa fundada por Fernando vai trazer sempre a lembrança do que era um sonho. E, mais ainda, as marcas que o fizeram se tornar realidade. Libertar pessoas sempre será o legado da Cooperativa Sonho de Liberdade.
“Graças a Deus, eu conquistei essa liberdade e pude sair de dentro do sistema penitenciário. E hoje eu posso estar proporcionando essa mesma liberdade que eu consegui. Não das grades, mas, muitas vezes, das pessoas que são viciadas, pessoas que têm outro tipo de comportamento, problema de depressão, de remédios controlados e tantas outras coisas”.
Essas pessoas são muito mais que colaboradores para Fernando. Segundo ele, são a sua família e seus heróis. Heróis que não são reconhecidos, mas que ele sonha com o dia em que isso irá acontecer como deve.
“Eles são heróis, só que não são reconhecidos. Tem o herói do futebol, tem o herói do Fórmula 1, herói de “não sei da onde”, tem tanto herói, mas esse pessoal aqui são os verdadeiros heróis. Eu tenho eles pra mim como guerreiros. São guerreiros. Eu não tenho nem palavras para descrever eles”.
Fernando afirma que ele quer ser de uma cooperativa com diferencial. Ele sabe o que é ser um ex-presidiário e quer que mais pessoas como ele possam se sentir libertas de verdade. Assim, mais que trazê-los de volta para um emprego, ele quer um ambiente de carinho, de afeto, união e amor. “Eu quero fazer com que aquela pessoa se sinta útil para ela poder reviver de novo. Não, nós não temos dinheiro suficiente, nós não temos facilidade, nós não pregamos facilidade. Mas nós temos hoje o desafio: vencer os obstáculos e nos tornar cada dia melhor”.
Poliana confirma esse pensamento de Fernando. A catadora passou por uma depressão e considera que a cooperativa foi um dos grandes motivos para a sua melhora. “A convivência com as meninas, que a gente brinca e fala as palavras, é o que tem me ajudado. A descontração, as amizades que têm aqui é o que ajuda a gente. Muito além da renda você tem as parceiras”, diz ela.
O idealizador da ideia diz que, se dependesse somente dele, os cooperados estariam ganhando muito mais dinheiro, porque é o que eles merecem. Eles passam por situações difíceis diariamente para levar o dinheiro para casa. Inclusive, muito além do sustento familiar, eles ajudam a sustentar o planeta terra através da reciclagem.
Empreendedorismo social
“O empreendedorismo social é aquele negócio que possui uma missão social explícita e central de melhorar a sociedade, a qual afeta a forma como se percebe e avalia as oportunidades”.
Ela entende que o objetivo é criar valor social, de forma a contribuir para o bem-estar de determinada comunidade, partindo do pressuposto da combinação do valor social com o valor econômico. “É a partir desse tipo de empreendedorismo que se permite desenvolver modelos inovadores para resolver as dificuldades da sociedade”, afirma Roberta Feitosa.
Inclusive, de acordo com a pesquisadora da FGV , sustentabilidade, meio ambiente, reciclagem, oportunidade para periferia e revitalização de comunidades estão entre as principais áreas de desenvolvimento do empreendedorismo em expansão no Brasil.
Segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o papel do empreendedor social é exatamente o que é buscado por Fernando. Trata-se de negócios transformadores, com propósito, que tragam impactos positivos, que ampliem as perspectivas das pessoas marginalizadas e criem autonomia para pessoas de classe baixa.
Ainda de acordo com o serviço, o Brasil conta com 97% de micro empresas, que geram cerca de 60% de empregos. Desses, o Sebrae identificou, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), mais de 800 negócios de impacto social no país.
Empreendedorismos voltados para a reciclagem ocupam parte deste número. De acordo com levantamento feito em 2018 pelo Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS), no Brasil, existem 1.553 cooperativas de resíduos sólidos, as quais coletaram 30,7% dos resíduos sólidos recolhidos no mesmo ano.
Pensando nisso, o Sebrae possui a Solução ou Produto de Fortalecimento de Associações e Cooperativas de Materiais Recicláveis, a fim de promover melhoria de renda e do ambiente de trabalho, além de garantir os direitos dos catadores e ampliar o percentual de reciclagem nos territórios que atendem.
O produto atende associações, cooperativas ou grupos informais que trabalham com reciclagem de resíduos. Em nota, o Sebrae apresentou os serviços prestados: planejamento, finanças, mercado, produção e jurídico, além de introduzir a cultura de melhoria contínua da gestão.
Para participar, os grupos devem ser identificados pelos escritórios regionais ou indicados pela gestão municipal, que vão gerar um termo de adesão que garanta o comprometimento em participar ativamente do processo de consultoria.
O programa terá nova edição que será multisetorial, prevendo o atendimento de 120 associações, cooperativas ou grupos informais, mas a reciclagem é setor prioritário. Já na primeira versão, São Paulo, como pioneiro do serviço, atendeu 62 cooperativas, 19 associações e 7 grupos informais, distribuídos em 77 municípios do Estado, sendo 6 em Guarulhos e 3 em Brasília.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério do Trabalho e Emprego reconheceu atividades dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis desde 2002, passando a serem responsáveis pelo abastecimento das indústrias recicladoras para reinserção dos resíduos em substituição ao uso de matérias-primas virgem, fortalecendo a economia circular.
Ainda em nota, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas explicou o termo ESG: “Na sociedade contemporânea, o ESG – Environmental, Social and Governance, que pode ser traduzido para o português como ‘ambiental, social e governança’ e é usado para descrever o quanto um empreendimento procura reduzir danos ao meio ambiente, adota as melhores práticas administrativas e está engajada com temas sociais”. Dessa forma, o cooperativismo envolve o ECG de modo a manter o foco nas pessoas e não no capital, proporcionando melhores condições de vida.
“O cooperativismo é um conjunto de soluções que constituem uma prova de que é possível unir desenvolvimento social e econômico, sustentabilidade e produtividade, individual e coletivo”.
Consciência ambiental
Além de ajudar no desenvolvimento para a economia e renda, a reciclagem influencia diretamente na saúde do meio ambiente e no bem-estar dos seres humanos. O biólogo Stefano Aires explica que os resíduos de lixo que não são reciclados ou reaproveitados podem poluir o meio ambiente de inúmeras formas. Ele usa como exemplo os pequenos pedaços de plásticos que possivelmente vão poluir muito a água, podendo causar sérios danos à saúde dos animais.
O Sebrae explica que a reciclagem promove vários benefícios, dentre eles estão: a preservação ambiental, redução da poluição e contaminação do solo, economia de energia, geração de renda, redução de custos no processo produtivo e preservação dos recursos naturais, que são cada vez mais limitados.
Questionado sobre a importância da reciclagem, Fernando afirmou que é uma questão de honra trabalhar com a reutilização. Para ele, não seria possível ajudar o planeta se pessoas como essas da cooperativa não se colocassem a disposição de colocar a mão no lixo e lidar com situações que nenhuma outra pessoa privilegiada passa.
“Hoje o meio ambiente está totalmente degradado, várias árvores, e toda a natureza sendo degradada, mas as pessoas só pensam em acabar com tudo. Muitas vezes, tudo isso depois volta pro lixo. É por isso que nós estamos aqui, para não deixar esse material voltar pro lixo. Pra salvar o nosso planeta terra!”.
Pollyana entende que reciclar mudou o caminho de sua vida e dos vizinhos. “Importante?! Eu não diria nem a palavra ‘importante’. Reciclar é essencial pra vida da gente. Por que reciclar é essencial pra vida da gente? Pra mim, como catadora, ajuda no meu ganho, ajuda na minha renda. Só que a reciclagem não é só em torno do meu ganhar, é também a vivência daqui 10 anos, para as nossas futuras gerações.
Cada um dos trabalhadores organiza-se com as folgas e se disciplina com o tempo de atividade. Sabem que o caminho pode estar ali. Ao olhar para o passado, eles têm cada dia mais certeza que um novo presente está sendo reciclado. A cada dia de expediente, “liberdade” e “futuro” passaram a caber na mesma frase.
Fonte: Agência de Notícias CEUB