O blockchain já não é mais uma possibilidade. Mas, sim, uma realidade para muitas empresas. E por que não dizer para as cooperativas? Bom, primeiro, é importante explicar do que se trata essa tecnologia, que a cada dia se torna mais conhecida, e qual o motivo de ter se tornado tão importante no dia a dia do universo do empreendedorismo e do cooperativismo.
A tecnologia blockchain é um mecanismo de banco de dados avançado que permite o compartilhamento transparente de informações na rede de uma empresa. Isso quer dizer que um banco de dados blockchain armazena dados em blocos interligados em uma cadeia. Desta forma, os dados são cronologicamente consistentes, porque não é possível excluir nem modificar a cadeia sem o consenso da rede. Como resultado, você pode usar a tecnologia blockchain para criar um ledger inalterável e imutável para monitorar pedidos, pagamentos, contas e outras transações. O sistema tem mecanismos integrados que impedem entradas de transações não autorizadas e criam consistência na visualização compartilhada dessas transações. Portanto, trata-se de um sistema altamente seguro e inviolável.
No mundo do cooperativismo, não é diferente. Um dos exemplos foi o que ocorreu no evento de tecnologia de automação bancária e de serviços financeiros da América Latina, o Ciab, que ocorreu em junho último, em São Paulo. Nele, foi anunciada a Rede Blockchain do Sistema Financeiro Nacional (RBSFN), capaz de conectar as principais instituições financeiras do Brasil por meio da tecnologia.
Fernando Lucindo, advogado especialista em direito cooperativo e advocacia digital, afirma que a tendência impacta diretamente nas cooperativas, mas que precisa haver um entendimento maior para que a blockchain seja usado em benefício delas. “O primeiro desafio é compreender a tecnologia e sua potencialidade. Isso passa pela educação e a formação dentro das cooperativas. Obviamente, temos que deixar de lado alguns preconceitos, principalmente o estigma criado em torno do bitcoin e das criptomoedas. O que a tecnologia traz é exatamente o seu controle sobre seus ativos, sem precisar de um terceiro. As transações são feitas diretamente de ‘pessoa-a-pessoa’ (peer-to-peer)”, afirma ele, alertando para os esquemas bilionários de pirâmide, onde as pessoas tomaram prejuízos por entregar seu dinheiro a um terceiro que prometeu, através de operações com criptomoedas, ganhos acima do normal. “Essa é a cartilha do golpe ponzi, que sempre ocorreu, seja com moeda corrente, gado, pedras preciosas, enfim, não tem a ver com as características da tecnologia. É importante esclarecer que o ecossistema blockchain vai muito além das criptomoedas”, completa.
Segundo ele, o esclarecimento sobre a tecnologia através de estudo deve ir além: há a necessidade de uma mudança cultural. “Devemos estar abertos para a quebra de paradigmas e de modelos que não mais se sustentam num mundo cada vez mais digitalizado e automatizado”, observa.
A partir daí, Lucindo reforça que, mesmo que o caminho não seja fácil, trata-se de um percurso inevitável. Ele cita o exemplo das “Cooperativas de Plataforma” que hoje, no Brasil, já nascem com essa característica de se desenvolverem no ambiente digital, como as de mobilidade urbana (especificamente, motoristas de aplicativo), e até mesmo as tradicionais, que perceberam a importância de rever seus modelos de negócio e governança, migrando gradualmente para serem mais digitais. “No ecossistema blockchain, a ideia da internet do valor, fará com que muitos modelos de negócios sejam absorvidos ou adaptados. As cooperativas, naturalmente, não ficarão de fora desse movimento. Acredito no advento de um ponto crítico no futuro, onde vão prevalecer as que se adaptarem. Acredito numa mudança gradativa, até porque muito do ecossistema da blockchain está em desenvolvimento, apesar de já termos muitas inovações e ferramentas que já podem ser utilizadas por cooperativas de alguns ramos, como as de transporte, agropecuário, consumo”, observa.
Minasul e Sicoob saem na frente ao adotar a tecnologia blockchain
Enquanto algumas cooperativas ainda analisam a entrada nesse universo, outras já começam a se tornar referência quando o assunto é blockchain. Uma delas é a Minasul, cooperativa agroindustrial que, em julho do ano passado, lançou sua stablecoin, chamada de “Coffecoin”, pareada em café.
Fernando explica que as stablecoins são um tipo de criptomoeda estável, ou seja, uma moeda digital que reúne a segurança da tecnologia blockchain e a estabilidade de estar pareada em uma moeda fiduciária (como o dólar ou real) ou mesmo em outros tipos de reserva, como ouro, prata, petróleo, obras de arte e commodities agrícolas como, neste caso, o próprio café. “A utilidade da “Coffecoin” é possibilitar transações comercias e de pagamentos dentro do ecossistema da cooperativa e do mercado mundial de café, utilizando a criptomoeda para pagamento de produtos e serviços ofertados por parceiros que aderirem ao projeto. A iniciativa é interessantíssima e a cooperativa sai à frente no setor e, sem dúvidas, irá colher bons frutos num futuro próximo”, aponta.
No entanto, Lucindo diz que o pouco volume de transações se dá ainda pela pouca adesão à tecnologia, já que para adquirir e operar a moeda, é necessário ter uma “wallet” (endereço compatível com a blockchain onde armazena seus ativos), entender como operá-la, utilizando chave pública e chave privada. Também deve-se criar uma conta na Exchange “Stonoex”, onde a criptomoeda está listada para negociações. “Como nesse exemplo, também em outras possibilidades de utilização da tecnologia, é necessário um conhecimento básico para operar. É preciso estudo e orientação”, destaca.
Outro exemplo de destaque é o Sicoob, cooperativa de crédito e pioneira a utilizar a tecnologia blockchain. No ano de 2016, deu início aos estudos sobre o tema. Em 2017, em parceria com outras grandes instituições financeiras nacionais, criou a sua primeira iniciativa com a tecnologia. Chamada de Sistema Financeiro Digital (SFD), teve como objetivo conectar datacenters dos participantes, o que permitiu que, em 14 de novembro 2018, fosse realizada a primeira transferência em tempo real de valores entre as instituições financeiras por meio da blockchain.
Fernando Lucindo confirma, então, que a utilização da tecnologia para controle de cadeias de produção já é uma possibilidade para todas as cooperativas. “Como sistema de registro de dados descentralizados, no blockchain temos controle da procedência de produtos e todos os integrantes de uma rede de produção, podendo controlar a origem de um determinado insumo e todas transformações dele ao longo da rede, para atestar quando determinado produto foi realmente produzido, de acordo com determinados padrões”, afirma.
Além disso, ele diz que a utilização de NFT’s (Non Fungible Tokens) para governança, certificações, geração de valor em comunidade também pode ser bem exploradas por cooperativas. “Rever, automatizar processos internos de participação e gestão democrática a partir das ideias de uma DAO (Descentralized Autonomous Organization) pode ser uma evolução para o sistema cooperativo. Enfim, há um sem número de possibilidades que somente a partir de uma adesão gradativa pelo sistema cooperativo podemos ver surgir outras possibilidades de aplicação considerando as potencialidades que a tecnologia blockchain pode proporcionar”, finaliza.
Tendências que estão por vir
O advogado especialista em direito cooperativo e advocacia digital Fernando Lucindo esteve no evento Blockchain Rio, que aconteceu em setembro de 2022 e discutiu as principais tendências que envolvem a tecnologia blockchain. Portanto, ele diz que o próprio blockchain em si é a própria tecnologia disruptiva, responsável por originar várias funcionalidades e modelos de negócios potencialmente revolucionários. “Como os sistemas blockchain fazem com que eu tenha uma base de dados distribuída (as cópias são compartilhadas pelos participantes da rede, os “nós”), podem ser registrados imóveis, garantias, toda lógica de cartórios e registros (imóveis, títulos, notas, etc.), sem a necessidade da gestão ou concentração numa autoridade central. Isso traz muitas possibilidades, o que nesse momento está em formação e desenvolvimento de diversos tipos de negócios”, pontua.
O especialista indica, ainda, que as próprias cooperativas de crédito comecem a olhar para o mercado de criptomoedas, como estão fazendo grandes players como o Itaú e o Nubank. “As cooperativas devem ir entrando e entendendo esse ecossistema. Obviamente, observando as disposições dos órgãos regulatórios. Tenho acompanhado e acredito que teremos algumas mudanças pela frente, tanto pelo Bacen quanto pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários). Num futuro próximo, haverá uma abertura para instituições financeiras operarem criptomoedas. Assim, as cooperativas devem se desprender um pouco da mentalidade tradicional, terem uma visão focada no futuro, senão ficarão para trás e podem perder uma grande oportunidade em aproveitar essa grande onda de desenvolvimento em web 3 que estamos vivenciando”, diz.
Por Leticia Rio Branco – Matéria publicada na edição 108 da Revista MundoCoop