Prever o futuro. Se antecipar perante os acontecimentos, traçar um potencial cenário e estar preparado para o que virá. Mas será que é possível?
Partindo dessa grande questão que sempre acompanhou a humanidade, mas que se intensificou nos últimos anos, a MundoCoop conversou com o antropólogo e futurista norte-americano, Jamais Cascio. Conhecido por ser o criador e difusor do termo BANI (Quebradiço, Ansioso, Não Linear e Incompreensível), que surgiu para dividir espaço com o famoso mundo VUCA (Volátil, Incerto, Complexo e Ambíguo) e transformar a relação da sociedade com a pós-pandemia – ou a chamada era do caos.
No bate-papo, Jamais explica que “os tipos de respostas a um ambiente BANI são todos baseados em estar pronto para agir quando algo totalmente inesperado acontece” e é essa nova realidade que queremos te apresentar. A previsão do futuro começa na mudança de visão sobre o momento presente!
Venha descobrir!
Por que a era em que vivemos é interpretada como caótica? É possível estimar o que nos espera a partir desse cenário?
Desde o fim da Guerra Fria e o surgimento da Internet, estrategistas e futuristas têm falado sobre um mundo de volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade – o chamado mundo “VUCA”. Mas o que emerge da década de 2010, especialmente a segunda metade, vai além dos níveis que já vistos antes. Os problemas parecem mais graves, desencadeiam maiores confusões e parecem muito mais difíceis de administrar, quanto mais de controlar. Os grandes sistemas globais tornaram-se menos consistentes.
Mesmo antes da pandemia em 2020, tivemos movimentos políticos globais organizados usando as mídias sociais; tecnologias que nos permitiram observar uns aos outros – e destruir uns aos outros – com mais precisão do que nunca; o empoderamento de comunidades marginalizadas, para o bem e para o mal; o surgimento de sistemas de aprendizagem de máquinas cada vez mais difíceis de entender; e, em geral, a crise que se agrava no clima do planeta.
Alguns deles, como os danos climáticos, estavam sendo construídos há décadas, mas começaram a acelerar. Outras foram mudanças surpreendentes em nossas instituições e sistemas. E, em vários casos, os tipos de forças desencadeadas na era VUCA começaram a se combinar e se reforçar mutuamente, criando um mundo onde não podemos mais nem mesmo começar a estimar as consequências ou ver padrões históricos. Especialmente no espaço político global, vimos pessoas e sistemas agindo de formas que estavam muito além do que a maioria das pessoas supunha serem regras e normas definitivas. Ficou claro para mim que havia forças que iam além da simples incerteza ou ambiguidade, e minavam ativamente nossa capacidade de planejar para o futuro. Essas coisas tornaram-se o modelo BANI.
Isso não significa que previsões sejam impossíveis na era BANI, mas, sim, que é preciso intensificar o esforço para iluminar possibilidades que anteriormente pareciam absurdas.
Como o conceito BANI nos prepara para o que está acontecendo no mundo de hoje? De forma simplificada, o que ele representa?
O BANI não pretende ser uma ferramenta para fazer mudanças nas organizações, pelo menos, não por si só. A linguagem do BANI – quebradiço, ansioso, não-linear e incompreensível – é uma forma de nomear e descrever os tipos de caos que vemos ao nosso redor. Ao nomear essas forças, começamos a ver que tipos de respostas e preparativos podem nos tornar mais capazes de ter sucesso, ou de pelo menos sobreviver. Você pode pensar no BANI como uma lente para trazer as questões em foco – ou, melhor ainda, como um prisma que pode pegar um feixe de luz bruto e separá-lo em seus componentes. Ver a luz como um espectro nos diz coisas sobre o mundo que não teriam sido aparentes antes, assim como o BANI.
Em última análise, o BANI representa minha tentativa de dar voz a uma crescente sensação de impotência que tantos de nós sentimos diante dos tipos de eventos e ameaças contínuas que temos visto nos últimos anos. Sinceramente, eu não fiz o BANI com o objetivo de torná-lo um conceito global; eu só o criei como uma forma de estudar e entender melhor o que tem acontecido. Dito isto, estou muito satisfeito que outros também tenham visto sua utilidade, não como um guia de estratégia ou livro de regras, mas como uma forma de articular e descrever a bagunça que nos cerca em todos os lugares.
Não se trata tanto de um substituto para o VUCA, mas de uma extensão. O VUCA deu um nome aos tipos de mudanças que estávamos vendo nos anos 90 e 2000. Em muitos aspectos, ele se tornou nosso ambiente diário e constante. Mas se quase tudo é VUCA, o termo se torna muito menos útil como uma forma de distinguir e destacar as mudanças mais radicais, rápidas e surpreendentes que acontecem com maior frequência.
E é aí que entra o BANI.
Uma das siglas presentes no BANI é “fragilidade”. Quais as ferramentas para lidar com esta questão?
Em inglês, o “B” em BANI significa a palavra “brittle” ou “brittleness” (quebradiço). Embora o significado seja semelhante, não é idêntico à tradução mais frequente como “frágil” ou “fragilidade”. Algo que é frágil é delicado e pode ser facilmente danificado; além disso, é geralmente evidente que algo é frágil e precisa ser tratado com cuidado.
Algo que é quebradiço, porém, não é visivelmente delicado, e pode parecer forte e confiável. Pode até mesmo ser forte e confiável, até certo ponto. Mas quando perde sua força, não apenas se dobra, mas se estilhaça. Algo que é quebradiço pode funcionar exatamente como o pretendido, mas, depois, falha completamente ao encarar muita pressão.
O método para combater a fragilidade é a “resiliência”. É um termo que você pode ter visto com maior frequência durante a última década ou duas, e por uma boa razão: resiliência significa ser capaz de lidar com um choque ao absorvê-lo. Não apenas resistindo, mas dobrando-se, se necessário, adaptando-se às novas forças. A resistência é quebradiça; a resiliência é flexível.
Resiliência refere-se à capacidade de resistir a choques inesperados, o que às vezes pode significar flexibilidade, ser capaz de se dobrar conforme o necessário e voltar depois que o choque tiver passado. Às vezes, pode significar uma “falha graciosa”, onde o sistema resiliente pode continuar a desempenhar pelo menos parte de sua função mesmo quando está se desfazendo, ou pelo menos não causar danos adicionais quando falha. Uma das características menos reconhecidas da resiliência é conhecida como “folga”. Basicamente, significa ter capacidades ou recursos adicionais além do que você normalmente precisa, em caso de um aumento repentino na demanda. Ou, simplesmente, suprimentos de emergência.
O desafio da resiliência é que ela pode custar mais do que não fazer nada: garantir que os componentes sejam flexíveis, que os sistemas sejam projetados para falhar graciosamente e que você tenha capacidade extra em caso de emergência pode ser caro.
Outro tópico em destaque é a não-linearidade. Estar aberto a novos caminhos é a chave para o futuro das organizações? Como evoluir nesse sentido sem perder o legado?
Do meu ponto de vista, os sistemas não lineares precisam de improvisação, da capacidade de se adaptar rapidamente a mudanças e desenvolvimentos inesperados. Ser criativo sob pressão. Normalmente pensamos na improvisação como sendo uma espécie de atuação, mas a habilidade se aplica a muito mais do que o palco. Improvisação significa pegar o que lhe foi dado – a situação, as exigências, as restrições – e descobrir como fazer com que algo significativo aconteça como resultado. Como ensinado na escola de atuação, a improvisação enfatiza a necessidade de não lutar contra o que lhe é dado, mas de aceitá-lo em totalidade, como sua realidade naquele momento.
Em nível organizacional, improvisar significa dar respostas apropriadas às situações com base nas condições do momento, em vez de simplesmente se basear em uma lista de verificação de respostas aprovadas. Ou seja, exige que as pessoas não se restrinjam apenas a escolhas pré-determinadas. Devo acrescentar aqui que pode ser o caso de as escolhas pré-determinadas serem apropriadas; francamente, em condições normais, essas escolhas pré-determinadas podem até ser as melhores. Mas quando as condições não são mais as normais, simplesmente continuar a fazer o que você tem feito – ou, pior ainda, ser forçado a continuar fazendo – pode ter resultados desastrosos às vezes.
A questão sobre o legado é interessante. Parte da função de uma organização é determinar quais aspectos de seu legado são verdadeiramente centrais para sua identidade, e quais estão lá porque sempre estiveram lá.
O risco na improvisação é o fracasso. Se uma abordagem improvisada ou nova é tentada – algo que não está na lista pré-determinada de opções – mas falha em realizar o que é necessário, muitas organizações verão isso como uma licença para punir o improvisador por tentar algo novo.
“É inteiramente possível integrar a improvisação na prática de uma organização, em essência, tornando-a parte do próprio legado”
O BANI sugere que tenhamos uma relação melhor com as mudanças que são inevitáveis. Esse conceito é uma resposta à busca incessante de previsões para o futuro? A necessidade de saber o que nos espera está atrapalhando a sociedade no presente?
É bom para uma sociedade – mesmo uma organização – pensar claramente nas possibilidades futuras, preparar-se para o inesperado e estar consciente das consequências no futuro das decisões atuais. O problema surge quando só uma discussão sobre um futuro “oficial” se torna aceitável. Procurar por possibilidades futuras que se encaixem na história desejada não é melhor do que não olhar para o futuro; na verdade, pode ser pior. Agarrar-se firmemente a um único futuro oficial significa ignorar desenvolvimentos contrários e descartar evidências que desafiam o resultado preferido.
Para muitos de nós que fazemos este tipo de trabalho, a linguagem que usamos ajuda a iluminar nossas perspectivas. Você encontrará pouquíssimos bons futuristas profissionais que usam a palavra inglesa “predict” – que significa descrever um resultado antes que ele aconteça. A palavra em inglês tem uma implicação de certeza. Se eu prevejo algo, afirmo ter certeza, sei que isso vai acontecer.
Em vez disso, a maioria de nós usa o termo em inglês “forecast” – que significa descrever um possível resultado antes que ele aconteça, possivelmente em conjunto com as coisas que podem fazer com que esse resultado não aconteça. Normalmente vemos a palavra “previsão” associada ao tempo. Quando os meteorologistas fazem previsões sobre o tempo para amanhã ou na próxima semana, eles frequentemente enfatizam que elas não são certezas, mas possibilidades – uma chance de cinquenta por cento de chuva, por exemplo. A maioria das pessoas sabe que a previsão do tempo provavelmente está certa, mas não ficará terrivelmente surpresa se algo estiver errado. Portanto, olhamos para a previsão do tempo de qualquer maneira, porque mesmo algo que provavelmente (mas não definitivamente) está certo, ainda nos será útil para planejarmos nossas atividades.
Mas é aqui que a comparação se torna um pouco louca. Se começarmos a ver padrões meteorológicos que não fazem sentido, onde temos temperaturas acima da média num dia e condições árticas no dia seguinte, podemos começar a pensar que a previsão do tempo é inútil. Mas a previsão do tempo ainda pode ser útil quando começa a descrever as forças subjacentes que moldam os resultados, e nos preparará não para uma única perspectiva provável do tempo, mas para a gama mais ampla de sistemas meteorológicos plausíveis.
“Ser resiliente significa colocar um pequeno guarda-chuva em nossa bolsa, mesmo quando a previsão é de sol”
O que podemos aprender com esta transição do mundo VUCA para o mundo BANI? O que você diria àqueles que estão procurando entender o momento atual e se preparar para o futuro?
Podemos aprender a ser flexíveis. Estamos em um momento da história em que a capacidade de reconhecer e responder criativamente a rápidas mudanças é a capacidade mais importante que temos. Melhor ainda é estarmos conscientes de nosso impacto sobre os outros à medida que nos adaptamos.
Diante do que é quebradiço, seja resiliente, tanto pessoal quanto organizacionalmente. Aprenda como você pode dobrar em vez de quebrar. Descubra maneiras de acrescentar alguma folga, alguma capacidade extra aos seus sistemas. Pode ser algo tão simples quanto suprimentos de emergência em casa; pode ser algo tão complexo quanto sistemas redundantes para manter sua organização funcionando. E se você não puder evitar falhas em uma situação, descubra como falhar graciosamente.
Em uma era de ansiedade, seja empático com os outros e consigo mesmo. O momento caótico em que nos encontramos está acontecendo a todos nós e precisamos reconhecer e compreender que todos nós estamos sentindo os efeitos de um sistema disfuncional. Em sua forma mais simples, é a disposição para ser gentil e indulgente – tanto para os outros como para nós mesmos. Todos nos sentimos impotentes; não precisamos nos fazer sentir piores.
Ao enfrentar o não-linear, improvise, adaptando-se rapidamente às novas condições e experiências. Em muitas cidades do mundo, você pode fazer aulas de “improvisação”, onde lhe são ensinadas maneiras de reconhecer elementos de mudança e de descobrir como responder enquanto a cena continua. Em outras palavras, para reconhecer uma realidade modificada e para ver maneiras de manter você e sua organização ou comunidade em meio a essa mudança.
E quando tudo é incompreensível, não podemos simplesmente confiar em nossa base de conhecimento para descobrir o que fazer. Às vezes, precisamos ouvir nossa intuição. É como nossos cérebros reconhecem as conexões sutis, ou quando algo não está bem. Os cérebros humanos são motores notáveis de reconhecimento de padrões, o produto de milhões de anos de evolução biológica. Buscar insights quando não se sabe exatamente o que está errado, ou o que fazer, às vezes, pode ser o único caminho para o sucesso – ou mesmo para a sobrevivência.
E as máquinas não podem fazer isso, ainda não. Nem mesmo o melhor ChatGPT pode aprender a ouvir um “pressentimento”. Mas você pode.
“Resiliência, empatia, improvisação e intuição são habilidades e capacidades que nos ajudam não apenas a sobreviver, mas a prosperar em um mundo caótico. E todas elas são traços muito humanos”
Por Fernanda Ricardi – Entrevista publicada na Revista MundoCoop edição 110