Em um cenário global em que mercado e consumidores estão cada vez mais exigentes com a origem dos insumos, as condições de produção e os impactos do que compram, as cooperativas brasileiras estão se preparando para serem protagonistas de uma economia mais sustentável.
A base para um modelo de negócio mais justo está na raiz do cooperativismo, criado em 1844 para promover o equilíbrio entre ganho social e econômico. O conceito é cada vez mais atual e caminha lado a lado com uma sigla bem contemporânea, ESG, (do inglês Environmental, Social e Governance), que se refere à responsabilidade ambiental, social e boa governança de empresas e organizações.
“Embora essas três letrinhas tenham se popularizado há pouco tempo, elas sempre estiveram presentes no DNA cooperativista. O cooperativismo já nasceu orientado para a pauta ESG. O cuidado com as pessoas, o respeito ao meio ambiente e a boa governança são partes indissociáveis do nosso modelo de negócios, estão nos nossos princípios”, compara a superintendente do Sistema OCB (entidade de representação das cooperativas brasileiras), Tania Zanella.
Hoje, o cooperativismo já atua com critérios ESG em várias frentes e agora pode usar essa experiência para liderar uma mudança no cenário nacional rumo a uma nova forma de fazer negócios.
“Não dá mais para falar de economia sem tratar dos impactos sociais, ambientais e de governança. O ESG não é uma modinha passageira. O mercado financeiro assumiu protagonismo e está criando regras relacionadas ao assunto, priorizando investimentos em fundos com selo ESG, e isso movimenta a economia nacional e internacional. Essa visão de impacto dos negócios tem tudo a ver com as cooperativas”, analisa Débora Ingrisano, gerente de Desenvolvimento de Cooperativas do Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop).
Com quase 5 mil cooperativas espalhadas pelo país, os exemplos de boas práticas ESG são inúmeros e em todos os ramos, do agronegócio ao setor financeiro. Alguns casos são emblemáticos, como o da Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu (Camta), em plena Amazônia, no Norte do Pará, reconhecida internacionalmente por sua produção sustentável.
Agrofloresta cooperativa
No coração da Floresta Amazônica, uma cooperativa desenvolveu um sistema de produção agroflorestal inovador e de ponta, hoje reconhecido nacional e internacionalmente. Fundada por imigrantes japoneses, a Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu (Camta), do Pará, descobriu na crise o caminho para crescer de forma sustentável e perene.
Durante muitos anos, a cooperativa foi a maior exportadora de pimenta-do-reino do mundo, até que uma praga dizimou toda a produção. Foram tempos difíceis, mas que trouxeram uma importante lição: não dava para viver da monocultura na floresta. Foi então que eles decidiram diversificar a produção, imitando a própria natureza. Surgiu assim o Sistema Agroflorestal de Tomé-Açu (Safta), que simula o ambiente natural da floresta nativa, com o cultivo em conjunto de cacau, maracujá, dendê e outras espécies.
Com o sucesso da nova tecnologia de plantio, a Camta passou a produzir e exportar pimenta-do-reino, cacau, açaí, frutas, óleos vegetais e outros produtos. Tudo em um sistema harmônico, em que o ciclos das plantas se complementam. Além dos benefícios ambientais, o modelo deu aos produtores cooperados uma importante vantagem competitiva, isso porque o Japão, principal destino das exportações da Camta, é muito exigente sobre a origem e condições de produção.
“O mercado japonês compra nossa história de produção agroflorestal, o selo Safta. No caso do cacau, compra porque temos o selo de Indicação Geográfica, que comprova que o nosso cacau é produzido em equilíbrio com a natureza, junto com espécies como o açaí, castanha-do-pará, andiroba”, explica o presidente da cooperativa, Alberto Oppata.
Por meio de um código de barras na embalagem das castanhas de cacau exportadas pela Camta, os clientes podem identificar de que propriedade veio o produto, o agricultor responsável e até saber como ele foi transportado até a indústria.
“Com essa rastreabilidade, é possível fabricar um chocolate e dizer exatamente o nome do cooperado que produziu aquele cacau”, comemora Oppala, destacando que a Camta vem trabalhando desde a década de 1970 em modo kaizen (conceito japonês que significa melhoria contínua).
“Fazemos questão de mostrar que a monocultura é um perigo constante e que o sistema agroflorestal é mais harmônico e sustentável, colaborando inclusive com o retorno dos pássaros, dos insetos e dos animais à floresta”, compara Oppata.
Segundo o presidente da cooperativa, a entidade “pensa verde para não ficar no vermelho” e os ganhos econômicos levam a benefícios sociais também. O pagamento aos cooperados e colaboradores, por exemplo, é feito com carteira assinada, o que garante direitos trabalhistas, diferente de outras formas de contratação comuns na região.
Com 172 cooperados e faturamento de R$50 milhões por ano, a Camta tem atualmente 8 mil hectares produtivos e mais 6 mil hectares em processo de renovação. Segundo Opatta, o objetivo é recuperar essas áreas com a ajuda da tecnologia para ampliar a produção sem desmatar a floresta nem utilizar fogo no meio na Amazônia.
“Essa renovação tem um custo elevado, por isso estamos trabalhando junto com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) com um equipamento chamado Tritucap, que vai triturando os cacaueiros antigos, os açaizeiros. A máquina tritura as árvores e faz a renovação dessas áreas sem necessidade de queima, evitando o lançamento de carbono na atmosfera”, explica.
Além do Japão, a Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu exporta para a Europa, Israel, Estados Unidos e está se preparando, com o apoio da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e da Apex (Agência Brasileira de Exportações), para entrar nos mercados árabe e chinês.
Povos da floresta
Também na Amazônia, uma cooperativa formada exclusivamente por indígenas alia a tradição cooperativista e o conhecimento ancestral do povo Piter Suruí para produzir castanha do Brasil, café orgânico e banana enquanto preservam a floresta nativa em pé.
Criada em 2017, a Cooperativa de Produção e Desenvolvimento do Povo Paiter Suruí (Coopaiter) tem cerca de 200 cooperados e atua em 25 aldeias da Terra Indígena Sete de Setembro, na divisa entre Rondônia e Mato Grosso. A área de 240 mil hectares é um oásis de floresta preservada que resiste ao desmatamento na região.
Além dos benefícios ambientais, a organização dos indígenas em uma cooperativa levou à melhoria das condições econômicas e sociais das aldeias. Com acesso a financiamento e assistência técnica, os cooperados passaram a comercializar a castanha processada e beneficiada, com maior valor agregado. O café produzido pelos Paiter Suruí já recebeu prêmio em concurso internacional e garantiu aos indígenas um contrato com valores acima do mercado com a maior indústria cafeeira do Brasil.
Do café ao crédito
A força do cooperativismo na produção sustentável também está em outras partes do Brasil, como em Minas Gerais, onde a Cooperativa Regional de Cafeicultores em Guaxupé (Cooxupé) é um exemplo de como a adoção de critérios ESG abre portas para mercados internacionais.
Com mais de 17 mil cooperados, a Cooxupé exporta para mais de 50 países e tem certificações que avalizam vários processos de sua cadeia produtiva, como a ISO 9001, que inclui o recebimento, classificação, compra, processamento e venda do café; e a C.A.F.E Practices – Práticas de Equidade do Café e do Agricultor, criado e utilizado pela rede Starbucks para a compra de grãos.
A cooperativa mineira também tem o selo de agricultura sustentável da organização internacional UTZ, utilizado em mais de 10 mil produtos em 116 países, e o 4C (Código Comum para a Comunidade Cafeeira), a principal certificação internacional na área de produção e cultivo de café.
A política de sustentabilidade da Cooxupé dá suporte aos cooperados para que os pequenos agricultores possam produzir de acordo com as exigências internacionais e também contempla medidas relacionadas a condições de trabalho, saúde, segurança e moradia dos trabalhadores, vedação de mão de obra infantil, preservação da biodiversidade e conservação e manejo do solo, gestão correta dos resíduos, entre outras.
A preocupação com questões ambientais, sociais e de governança também estão na agenda do cooperativismo financeiro brasileiro. O tema não é novo no setor, que tem como vocação promover a inclusão financeira, mas tem ganhado importância diante das exigências de responsabilidade social, ambiental e climática feitas pelo Banco Central do Brasil para todas as instituições do sistema financeiro.
Pesquisa recente da consultoria PwC mostra que mais da metade das cooperativas de crédito do país (51%) consideram a incorporação do ESG na estratégia da entidade muito relevante para atrair ou reter cooperados. De acordo com o levantamento, as cooperativas financeiras têm potencial para melhorar nas três dimensões do ESG, mas principalmente nos aspectos ligados à governança. Atualmente, quase todas as instituições ouvidas na pesquisa (98%) já fazem avaliação de riscos socioambientais na análise de crédito, conforme exigido pelo Banco Central.
Na dimensão social, a pesquisa revela que 85% das cooperativas financeiras promovem ações de educação financeira para a comunidade e 61% atuam na inclusão financeira de pequenos negócios, alinhadas com os princípios cooperativistas.
No quesito governança, 80% das cooperativas analisadas pela consultoria já fazem gerenciamento de riscos financeiros e 63% têm políticas definidas de ética e transparência (63%).
Protagonismo na pauta ESG
Para ajudar as cooperativas brasileiras a consolidar e ampliar práticas de responsabilidade social, ambiental e de governança com base nos critérios ESG, o Sistema OCB lançou o programa ESGCoop. Elaborado a partir de contribuições de cooperativas de todo o Brasil, parceiros de mercado, clientes e de experiências internacionais, o programa vai permitir que as cooperativas traduzam em indicadores as práticas de sustentabilidade que estão em seu DNA e sempre fizeram parte de seu modelo de negócios.
“O projeto tem como pilares o mapeamento de ações já realizadas no cooperativismo, a definição e organização de indicadores conectados com os nossos negócios, a escolha de caminhos coletivos de evolução para gerar o maior impacto positivo possível, e a formação de lideranças ESG”, explica Tânia Zanella, superintendente do Sistema OCB.
Com a iniciativa, a entidade de representação quer que as cooperativas brasileiras assumam a agenda ESG em todas as áreas e os temas não fiquem restritos aos departamentos de sustentabilidade. Na prática, o programa vai apoiar iniciativas como promoção da educação, fomento do desenvolvimento local, combate e adaptação às mudanças climáticas e incentivo à diversidade e presença de mulheres em cargos estratégicos, entre outras.
“Já fazemos tudo isso, mas podemos fazer muito mais, juntos, compartilhando boas práticas, medindo impacto e comunicando adequadamente”, avalia a superintendente.
Segundo Tânia, o ESG é um caminho sem volta. Além da preocupação crescente das gerações mais jovens com a responsabilidade das empresas que produzem o que consomem, as exigências do mercado e dos investidores estão cada vez mais alinhadas com a sustentabilidade ambiental e social e com critérios de ética e integridade na gestão.
“As cooperativas podem se aproximar dessa pauta porque trará boas oportunidades; mas também podem se apropriar dessa agenda por convicção, por entender que é papel da cooperativa atuar e ter responsabilidade sobre os desafios socioambientais do Brasil e das nossas comunidades. Não vejo como fazer essa transformação sem o cooperativismo na vanguarda e na liderança desse tema”, conclui.
ESG em números
8 em cada 10 consumidores da geração Z (nascidos na segunda metade dos anos 1990 até o início do ano 2010) se importam com o ESG e só querem se relacionar com empresas que tenham propósito.
Cerca de 120 países dos cinco continentes só importam mercadorias produzidas de forma sustentável, ou seja, levando em conta princípios ESG.
De onde vem o conceito ESG?
A sigla foi definida pela primeira vez em 2004 no documento Who Cares Wins, elaborado pelo Banco Mundial em parceria com o Pacto Global — documento de adesão voluntária, proposto pela Organização das Nações Unidas (ONU), que convida empresas e organizações de todo o mundo a se unirem para promover dentro de seus negócios boas práticas de direitos humanos, desenvolvimento sustentável, trabalho digno e ética.
O relatório em questão estimulava instituições financeiras e o mercado de capitais a considerar fatores sociais, ambientais e de governança em suas ações. Uma maneira de incentivá-las a colaborar com o desenvolvimento das comunidades onde atuam, tal como fazem as cooperativas em todo o mundo.
Fonte: SomosCoop/ Portal G1