Imagine a seguinte situação: você está acostumado a lidar com um sistema operacional do seu smartphone há anos. Mas, por alguma razão, é necessário migrar para outro. Ao olhar aquela tela na sua frente, bate um medo: “como vou saber mexer nisso? Estava acostumado com o outro”. Pois é. Mas essa situação é cada vez mais comum do que você imagina. Principalmente por vivermos numa era completamente digital, rápida e onde a informação muda a cada segundo. Ou seria a cada milésimo de segundo? Não importa. O mundo mudou e, se você não mudar com ele, vai ficar para trás.
E porque não dizer que, além das mudanças nas atualizações dos mais variados sistemas, a forma de lidar com o próximo, dentre muitas outras maneiras de se relacionar, principalmente nas empresas e cooperativas, também mudou? Para saber mais sobre essas mudanças que impactam em toda a sociedade e como o conceito de desaprender e reaprender se encaixa nisso, especialistas das mais diversas áreas conversaram com a Mundocoop.
O conceito de desaprender vem da frase do pensador norte-americano Alvin Toffler (1928-2016), que diz: “o analfabeto do século 21 não será aquele que não consegue ler e escrever, mas aquele que não consegue aprender, desaprender e reaprender”. Para Stefanie Ferracciu, diretora de RH da BigDataCorp, plataforma de dados da era digital, esse pensamento é extremamente coerente. “Essa fala nos faz refletir sobre como estamos preparados para aprender as coisas, a qualquer momento da nossa vida, e isso deve ser mais fluido. A grande questão sobre desaprender e reaprender é de se ter um significado para sermos mais flexíveis na nossa forma de ver a vida, seja profissional ou pessoal. É estar aberto para o novo, enxergar as coisas sob uma nova perspectiva, abrindo a mente para novas formas de resolver as questões”, afirma.
Marianna Wahrlich, psicóloga e especialista em educação e desenvolvimento Humano completa, dizendo que a mudança está acontecendo cada vez mais rápido e, obviamente, impactando nos negócios. “É fundamental deixar para trás aquilo que já funcionou um dia, mas não funciona mais. E compreender o que é realmente útil para o contexto do presente e deve ser aprendido para a próxima fase. Desaprender é reconhecer que o velho modelo não é eficaz, isso pode ser desconfortável. Porém, é a chave para identificarmos e, então, reaprendermos o novo modelo necessário para atender nossos objetivos”, diz.
Beerud Sheth, cofundador e CEO da Gupshup, plataforma líder para engajamento de conversação em mercados emergentes, conta, na prática, como teve que mudar de direção, ao reaprender como se posicionar no mercado. O empresário, que durante o ensino médio ficou em primeiro lugar no National Talent Search, um programa nacional de bolsas de estudo que identificava alunos com alto intelecto e talento acadêmico, também conquistou o terceiro lugar nas Olimpíadas de Matemática da Índia e, ainda, foi um dos primeiros lugares nos exames de admissão do IIT e do MIT. “Esses resultados, fruto de toda a minha dedicação, me fizeram pensar que eu poderia ter sucesso em tudo. Aos 28 anos, arrisquei e larguei meu trabalho lucrativo em Wall Street para empreender. Fora da minha zona de conforto, tive que literalmente desaprender, me desconstruir, ter humildade para abrir o Elance, em 1998, um mercado online para freelancers. No primeiro ano, meu salário era zero. Vivia da renda da minha esposa. Acredito que o conceito de empreendedorismo, e o que deve ser praticado na sua empresa, já traz consigo a ideia de desaprender e reaprender, reinventar-se”, afirma.
Segundo Sylvia Urquieta, presidente na COOPRODADOS, Cooperativa de Trabalho dos Profissionais de Privacidade e Proteção de Dados, os termos “ressignificar” e “inovar” devem ser usados. “Não gosto de usar o termo “desaprender” porque me dá a sensação de que nada do que aprendi até o momento serve, e preciso deletar tudo. Não posso desconsiderar o que aprendi, senão, como chegaria a esta fase da vida? Também não simpatizo com o termo “reaprender”, porque ele parte do princípio que algo já existe para ser aprendido. Gosto de navegar em mares em que nada existe e, através da sua observação, escolher a melhor rota e criar o impensado”, explica.
Como conseguir colocar esse nova forma de agir em prática? Edward Hess, em seu livro “Hyper Learning”, alerta para o fato de que “toda aprendizagem acontece por meio de reflexões profundas ou em conversas com os outros. A partir destas interações, é possível ser confrontado com opiniões diferentes e, assim, reconfigurar nossos modelos mentais para pensar sob um outro olhar reconfigurado ou pelo ponto de vista do outro”. Diante disso, Stefanie Ferracciu afirma que o reaprender está em todos os âmbitos de nossas vidas. A especialista em RH diz que, por vivermos na era da informação, o que você aprendeu ontem pode já estar desatualizado. “O reaprender é algo fluido e constante, juntando formas diferentes de aprendizado, como cursos, vivências, workshops, projetos com públicos diferentes e assuntos diversos que, hoje, se mesclam muito. A chave é ter humildade intelectual e abertura para entender que o novo está em qualquer lugar, a qualquer hora”, ensina, complementando que, de acordo com o comentário de Edward, é necessário que se busque, cada vez mais, qualidades como o autoconhecimento e a comunicação. “É preciso saber ouvir, interpretar e ajustar. Conhecimento não necessariamente é igual a entendimento. Saber se colocar na posição vulnerável de que o outro entende diferente de você, e que nele há uma verdade que é importante de ser observada, nos coloca em outro patamar de aprendizado.”
Já Sylvia Urquieta defende que as pessoas precisam ser muito curiosas, inquietas, observadoras, socializar e admirar a solitude o que, para ela é “um momento propício para insights e alcançar outras visões”. “As pessoas precisam se informar e ler temas das mais diversas fontes e assuntos. É importante se permitir conversar com diversas pessoas, culturas, grau de escolaridade, status social. É preciso entender o mundo delas, das pessoas em condição de rua até o CEO de alguma corporação. Na era digital, não é mais suficiente dizer que aquilo que você sabe permanecerá atual pelos próximos 20 anos. Por isso, é preciso reavaliar continuamente as habilidades exigidas pelo mercado, garantindo que permaneçam atualizadas”, completa.
Do alto de sua experiência e se apoiando na neurociência, Beerud Sheth explica que o cérebro tem uma capacidade finita e, para aprender algo novo, é preciso abrir espaço. “Isso só é possível descartando informações que não fazem mais sentido. É preciso desaprender para aprender! Pense num software que precisa de atualizações constantes. Precisamos ter em mente que, a cada passo, você tem que ter a mesma sensação de como se fosse a primeira vez. Também precisamos saber como construir valor, o que exige muito trabalho, correção de problemas e equilíbrio. E, finalmente, construir um hábito: usar o que for necessário, armazenar as informações e, se necessário, reaprender. Temos que pensar que somos como uma folha de papel em branco, que sempre pode começar de novo. E não necessariamente do zero”, ressalta.
Para Marianna Wahrlich, a chave da mudança está no comportamento de cada um. “Precisamos definir os comportamentos mensuráveis que evidenciam o desejado, bem como a sua falta, também. É como você ouve, se conecta, se relaciona emocionalmente com as pessoas e como colabora. Devemos buscar as informações que desafiem o que acreditamos e ter coragem de fazer perguntas: por quê? E se? Por que não? Isso faz parte do mindset de crescimento também: saber abraçar diferenças e dar sentido a elas”, observa.
Cooperativas devem apoiar as mudanças em todos os aspectos
No ramo das cooperativas, as mudanças também devem fazer parte do novo momento que o mundo passa, onde as relações de trabalho também se transformam. Muitas cooperativas, por exemplo, adotaram o modelo híbrido ou home office, e seus funcionários passaram de contrato CLT a prestador de serviços. “A tendência é que os funcionários se tornem microempreendedores, prestando serviços a diversas empresas, o que requer uma drástica mudança de mindset, principalmente por que esse profissional vai precisar entender que a geração de renda está totalmente vinculada a sua habilidade em estar no mercado, compreendendo como se move e entendendo como chegar ao público certo. Então, todos precisam desenvolver esta qualidade, permanecendo produtivos e úteis a sociedade, independentemente da idade e do cargo ocupado”, adianta Sylvia Urquieta.
Stefanie concorda e diz que todos os funcionários precisam dessa habilidade. “Isso fará com que se amplie seu conhecimento e o faça voar mais alto, independente da sua posição na empresa. Nas cooperativas, faço o convite de se colocarem à disposição de desaprender desde práticas e estilos de liderança, até processos e rotinas que parecem ser óbvios. Tenham a liderança e o time de Recursos Humanos para apoiar essa transformação e investimento no autoconhecimento e na troca trazendo, como pauta principal, o desaprender para reaprender”, ressalva.
Por conta disso, as cooperativas devem estar cada vez mais focadas na diversidade e na inclusão. Mesmo que isso não seja tão fácil como parece. “O conceito de desaprender e reaprender pode ser um desafio a mais, considerando o mix geracional e as diferentes culturas existentes. Enquanto a tecnologia terá a capacidade de atualizar continuamente seus ‘modelos mentais’ melhor e mais rápido do que os humanos, nosso diferencial estará na nossa forma de pensar, ou seja, o que a tecnologia não poderá fazer de forma eficaz. Isso exige, tanto de indivíduos quanto de organizações, disciplina e rigor na otimização do processo de desaprender e reaprender”, diz Marianna Wahrlich.
E enquanto muitos pensam que a nova forma de pensar está atrelada somente às gerações mais jovens, Beerud Sheth afirma que todas as gerações devem estar no mesmo lugar. “Entendo que muitos pensem que pode ser mais difícil para as gerações mais tradicionais lidarem com esse novo conceito, mas eu discordo. Enquanto os mais novos nasceram nesse mundo digital e com pensamentos mais fluidos, as outras gerações podem ter tanta vontade de se inserir nesse universo, surpreendendo a todos. Na Gupshup, todos têm acesso aos meios para se desenvolver de forma criativa e de acordo com sua capacidade. Todos são iguais e, portanto, a inclusão é uma realidade. É um desafio? Sim, mas é por isso que existem empresas e empresas”, finaliza.
Por Leticia Rio Branco – Matéria publicada na edição 107 da Revista MundoCoop