No semiárido brasileiro, especialmente na região Nordeste, a natureza tem uma força particular, está adaptada a sobreviver depois de longos períodos de estiagem. A Caatinga é um bioma principalmente arbustivo, de árvores baixas e troncos tortuosos, resiliente ao solo seco e de vegetação com capacidade para armazenar água. É também paisagem de cactos, como o mandacaru, a coroa-de-frade e o xiquexique, e de frutas nativas, como o umbu e o maracujá da Caatinga. Uma beleza que não se repete em nenhum outro lugar: é o único bioma exclusivamente brasileiro e, dentre todas as regiões de semiárido do mundo, é a mais rica em biodiversidade. Protegê-la e valorizá-la é fundamental para a manutenção da variedade biológica do planeta.
Apesar de resistente aos naturais períodos de seca, a Caatinga é extremamente vulnerável às mudanças climáticas e está suscetível à desertificação. Um estudo publicado em maio de 2022, feito por pesquisadores brasileiros das universidades federais do Rio Grande do Norte, do ABC Paulista e da Universidade de São Paulo (USP), apontou que 50% da área do bioma já foi devastada. Pratica-se o desmatamento como forma de subsistência, e as plantas nativas são substituídas por monocultura e pecuária. Mas a prosperidade mora justamente no bioma preservado.
A Caatinga é potencialmente generosa. Respeitados os seus tempos e as suas particularidades, é terra de frutos suculentos e raros. Em Pintadas, no interior da Bahia, um grupo de mulheres ajustou o olhar para o que até então era, literalmente, paisagem e começou a ver riqueza. Dos pés carregados de umbu nasceu a Cooperativa Ser do Sertão, em 2010. A fruta nativa, saborosa e cítrica, é bem comum nos quintais de quem mora no semiárido, mas não tinha valor comercial até anos atrás. Como ninguém dava conta de comer tanto umbu, muita fruta era desperdiçada.
A cooperativa criou a Delícias do Jacuípe, fábrica para processar polpa congelada da fruta, e começou bem pequena, com liquidificadores caseiros. Mas a iniciativa ganhou corpo e parceiros importantes: a Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional, do governo baiano, e o WRI Brasil (organização internacional que apoia a conservação de ecossistemas). A cooperativa se equipou e passou a fornecer umbu para a merenda escolar da região, em polpas congeladas de 1kg.
Recentemente, a Delícias do Jacuípe passou por nova reestruturação, construiu sede própria e hoje tem capacidade para processar 2,5 toneladas de fruta por dia e armazenar até 89 toneladas. Além do umbu, processa mais 10 frutas: as nativas maracujá da Caatinga e cajá-umbu, além de outras como acerola, ceriguela e graviola. E entrou também no mercado privado, com pacotes de 100g, com um diferencial importante: as polpas são 100% frutas selecionadas, sem pasteurização ou adicionais de água ou corantes.
Hoje a fábrica de polpa é um braço da cooperativa agrícola, que também dá suporte à produção de leite, cordeiro e hortaliças dos cooperados. Para a presidente da Ser do Sertão, Valdirene Santos Oliveira, dar assistência a todo o ciclo de sustento do sertanejo é a melhor forma de manter a Caatinga em pé:
“Criamos as outras linhas de trabalho para poder absorver a produção do cooperado. Para termos resultado, precisamos fortalecer o foco de sustentação do produtor. Mesmo que você queira que ele refloreste a área com umbu ou maracujá da Caatinga, ele só vai fazer isso se estiver se sustentando bem com a produção de leite ou de cordeiro. Você tem que ver o todo da propriedade e da realidade deles”, explica.
Mais do que evitar que pés de umbu fossem derrubados – o que era rotina antes da fábrica de polpa, quando a árvore parecia não ter serventia para quem morava ali –, a cooperativa assumiu a responsabilidade de transmitir aos cooperados a importância de manter todo o bioma preservado. Parte do trabalho da entidade é promover nas propriedades com áreas degradadas projetos de reflorestamento, que contemplam tanto o sustento do sertanejo como a manutenção do ecossistema. O programa abrange o plantio de três categorias de plantas: árvores nativas, árvores frutíferas e reserva alimentar para a criação de gado ou cordeiro. De acordo com Valdirene, levar em conta as necessidades do produtor é fundamental para um reflorestamento efetivo e para garantir que a área continue protegida.
Hoje a Ser do Sertão agrega quase 300 cooperados no entorno, 120 deles dedicados à produção de frutas. Na parte de hortaliças e frutas, a maioria dos cooperados é feminina, o que reforça a importância da entidade na organização social da região. Quem tem umbu na propriedade hoje vê a árvore com uma poupança, que anualmente traz uma renda extra significativa às famílias. A presidente comenta que o desenvolvimento da agricultura familiar promovido pela cooperativa trouxe mudanças no entorno e fez muita gente voltar ao cultivo, com mais confiança de que a Caatinga é, sim, terra fértil e rica:
“A Caatinga tem resultados fantásticos, ela precisa ser valorizada. Até pouco tempo atrás as pessoas tinham vergonha de dizer que moravam no semiárido baiano, a região estava associada a uma imagem de sofrimento, de terra rachada e gado morto. Nós temos seca, mas podemos produzir com qualidade e quantidade. Só precisamos entender que a Caatinga tem o tempo dela, e temos que aprender a conviver com esse tempo”.
A Ser do Sertão abriu um caminho de valorização aos frutos nativos, e outras cooperativas da Caatinga também passaram a explorar o umbu em diferentes produtos, como geleia, cerveja e cachaça. Esta história é pura inspiração para todos nós, em qualquer ramo do cooperativismo em que estejamos inseridos. A prosperidade sempre esteve ali. Os pés de umbu carregados desencadearam um ciclo de boas ideias, uma inovação à moda Isaac Newton, que dizem ter descoberto a gravidade quando foi atingido por uma maçã que caiu da árvore. Vamos hoje todos dormir com essa pergunta: qual solução está caindo de madura na nossa cabeça e que ainda não tivemos olhos para ver?
*Marcelo Vieira Martins é CEO da Unicred União