Restaurar áreas degradadas de Mata Atlântica, recuperar e proteger nascentes e promover condições para o avanço da biodiversidade. Tudo isso gerando renda e contribuindo para a autonomia das comunidades quilombolas da região do Vale do Ribeira (SP) e para o fortalecimento de seus territórios.
Este é o trabalho da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, que encerra o ano com uma grande conquista: a formalização de uma cooperativa de coletores quilombolas voltada à restauração ecológica de floresta nativa do bioma mais degradado do Brasil.
A Rede de Sementes do Vale do Ribeira teve início em 2017 e, desde então, já comercializou mais de seis toneladas de sementes que foram suficientes para a restauração de cerca de 170 hectares de Mata Atlântica nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais e Paraná, com 100 variedades de espécies nativas. Somente em 2023, foi fornecida 1,14 tonelada, dentro de uma variedade de 81 espécies.
São 60 os coletores que realizam este trabalho de extrativismo em seus territórios. Trabalho este que só é possível porque, habitando a região há mais de 400 anos, eles foram os responsáveis pela manutenção do maior remanescente de Mata Atlântica do país. Ou seja, a maior parte do que resta preservado do bioma está em seus quilombos, o que deveria lhes conferir o reconhecimento de guardiões da floresta em pé.
O ciclo de preservação ambiental, manejo de terra e geração de renda para o bem-viver das comunidades é a base da ocupação territorial secular dos quilombos na região. (Muito embora a preservação que eles mesmos praticaram seja razão para a manifestação violenta de um aparelho estatal racista, que hoje tenta criminalizá-los pela prática de suas roças, as mesmas que proporcionaram a conservação da mata ao longo dos últimos séculos.
E hoje eles coletam as sementes do que conservaram para gerar ainda mais floresta.
“Mas semente gera renda?”
Mas se hoje a Rede de Sementes do Vale do Ribeira se estruturou a tal ponto de surgir a necessidade de formalização em uma cooperativa, lá no início este trabalho gerava desconfiança e era até motivo de zombaria entre os mais céticos.
“A gente ria quando o Juliano [Nascimento, assessor técnico do Instituto Socioambiental (ISA), um dos responsáveis por apresentar este modelo de trabalho às comunidades] vinha com essa conversa de coletar semente. Onde já se viu?! A gente viveu uma vida inteira pisando nestas sementes na estrada. Não tinha como aquilo ser sério”, recorda Dona Zélia Morato, liderança do Quilombo André Lopes, localizado em Eldorado, coletora e agora secretária da recém-criada Cooperativa da Rede de Sementes do Vale do Ribeira.
Dona Nilza Oliveira, do Quilombo André Lopes, se diverte lembrando que o sentimento era compartilhado por todos. “Eu não sentia firmeza nesse negócio de semente, não. Cheguei a ir nas primeiras rodas de conversa, lá no começo, mas fui até embora. Até um dia em que eu vi a Zélia catando e limpando umas sementes na beira da estrada. Parei para conversar e fiquei ajudando ela. E dali a um tempo ela me chegou com parte do pagamento. Eu nem acreditei que era verdade. Foi daí que peguei gosto.”
Zélia só acreditou que a coleta daquelas sementes poderia mesmo se tornar uma fonte de renda quando visitou a Rede de Sementes do Xingu, uma iniciativa com 16 anos de atuação, estruturada por povos indígenas, agricultores familiares e comunidades urbanas localizadas em territórios da Amazônia e do Cerrado no estado de Mato Grosso. “Eu fui como espiã”, brinca. “Mas ali eu vi a grandeza deste trabalho.”
“Ninguém botou fé nisso. Para mim não daria dinheiro. Eu pisei nessas sementes a vida toda. Como que podia?! Eu fui só por curiosidade. E hoje sou muito feliz. Foi uma coisa muito importante para nós. Além do complemento de renda, ainda aproximou as comunidades. E eu, que sempre tive o sonho de escrever um livro, tive a oportunidade de participar de um livro. Meu nome está lá, contando nossas histórias aqui da comunidade”, relata o senhor João da Mota, do Quilombo Nhunguara, de Eldorado.
Uma Rede de empoderamento
Dona Zélia e Dona Nilza representam a força feminina da cooperativa, vez que mais de 60% de seu quadro é composto por mulheres.
E assim, além de fortalecer a restauração ecológica e a manutenção da floresta em pé, a Rede de Sementes do Vale do Ribeira ainda se torna uma ferramenta de empoderamento das mulheres quilombolas, que têm na coleta a garantia de um complemento de renda para a família ou até fazendo dela sua atividade primeira.
“Hoje, para nós, a Rede é um espetáculo. Ninguém mais quer sair. É uma renda que podemos contar, que ajuda muito. Muitas de nós conseguimos comprar algumas coisas que não conseguiríamos de outra maneira. Eu mesma comprei telhas para minha casa que estava goteirando havia muito tempo. Para mim é um sonho”, reforça Dona Zélia.
“Além da independência financeira, ainda tem uma autonomia, um empoderamento pessoal que é visível desde o início deste trabalho. Elas realizam todas as tarefas. Carregam as sementes. Não precisam pedir que nenhum homem faça isso por elas. E assim elas conquistam sua independência em tantas frentes. E ainda tem a materialização de uma sororidade que é muito bonita de ver. Elas se reúnem para ir para a floresta juntas e se auxiliam nos processos de coleta, limpeza e armazenamento. E, no final, isso se converte em bens para suas famílias”, relata a técnica do ISA, Giovanna Bernardes.
O senhor João Catá, como é conhecido o senhor João da Mota, diz compreender porque as mulheres assumiram a maioria da Rede de Sementes. “As mulheres têm uma visão mais adiante. Nós, homens, somos muito espaçosos. Chegamos em casa e achamos que estamos mais cansados do que elas. Por isso elas encabeçaram esta Rede. Elas tiveram essa força de vontade.” Ele pontua como isso é importante dentro de casa: “o homem ainda gasta o dinheiro errado. Já a mulher sabe do que precisa.”
Cooperativa: floresta que gera floresta
Maria Tereza Vieira, liderança do Quilombo Nhunguara, que também conheceu a iniciativa desenvolvida no Xingu, conta que, para além de uma oportunidade de trabalho, enxergou na coleta de sementes algo que se transformou em um propósito para as comunidades. “É claro que a renda ajuda muito, mas não é só essa a nossa finalidade. O que queremos é reflorestar esse mundo afora, levar árvores para onde não tem.”
Participando da oficina para melhoria de gestão da Cooperativa da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, que teve sua última etapa realizada em dezembro, Maria Tereza ainda reforça como estes encontros para esta construção coletiva serviram de aprendizado para além da Rede. “Agora estamos compreendendo como de fato funciona uma cooperativa, a importância do papel de cada um, da harmonia do conjunto. A gente nem imaginava como precisava deste conhecimento. Foi tão importante que vamos levar estes processos para dentro das nossas comunidades, para estruturar melhor nossas associações.”
O técnico do ISA, Juliano Nascimento, explica que a Cooperativa foi formalizada em julho deste ano de 2023 e que agora segue nas tramitações jurídicas e burocráticas necessárias para seu pleno funcionamento. Segundo ele, a expectativa é de que ela esteja apta a funcionar já no início de 2024. Ele também destaca a importância deste trabalho para as comunidades, e como ele está intimamente ligado à sua história e aos acúmulos adquiridos com o passar do tempo.
“É uma renda que vem de um produto da floresta, fruto do extrativismo, que depende muito do conhecimento destas pessoas e prescinde da conservação que foi feita ao longo dos anos nestes territórios. Porque só é possível coletar tanta semente e gerar renda para estas famílias, para os territórios, porque houve esta conservação. E é incrível pensar que muitas destas mulheres não tinham uma fonte de renda antes da coleta de sementes. Então isso só vem a agregar em todos os sentidos.”
Modelo para a sociedade
Coordenador do Programa Vale do Ribeira do ISA, Frederico Viegas reforça como a iniciativa cumpre diversos papéis de extrema importância no âmbito socioambiental.
“Esta estratégia cobre duas pontas muito importantes: fortalece as comunidades quilombolas que mantêm a floresta em pé, que vivem e conservam estas áreas para que seja possível coletar estas sementes; e restaura áreas degradadas passíveis de restauração, levando diversidade para onde não tem. E ainda há a geração de renda para o fortalecimento das comunidades.”
De acordo com Viegas, este é um trabalho que deveria servir como exemplo para toda a sociedade. “A partir de seus modos de vida, estas comunidades apresentam um modelo de sociedade que todos deveríamos almejar. Qual é o futuro que nós queremos? Acredito que seja um futuro em que possamos continuar vivendo sobre a Terra. E esta estratégia toda cumpre este objetivo ao juntar estas pontas, contribuindo para a restauração e manutenção da Mata Atlântica, cumprindo uma função socioambiental tão importante para o país.”
A Rede de Sementes do Vale do Ribeira integra o Redário, uma rede de Redes de Sementes coordenada pelo ISA que soma um total de 24 iniciativas de coleta e distribuição de sementes de quase todos os biomas do Brasil para restauração a partir da muvuca, técnica que simula a própria natureza: a reunião estratégica de plantas com diferentes funções biológicas e ciclos de vida em um único plantio.
Fonte: Socioambiental